sábado, 22 de março de 2014

Qual o limite da desumanidade?


“Corra a justiça como as águas, e a retidão, como o ribeiro perene” (Amós 5.24)

Todos acompanhamos perplexos a história da Claudia Silvia Ferreira, que foi morta por policiais no Rio de Janeiro e depois arrastada por vários quilômetros pelas ruas da cidade. Os policiais, como de praxe, não assumiram seus erros e inventaram histórias, implantaram supostos indícios de envolvimento com o tráfico, tentando criar sobre aquela pobre mulher uma imagem de parceira da criminalidade. O que não é verdade. Mas qual a importância da verdade num mundo que jaz no maligno? (I João 5.19)
                Como diria o autor de Eclesiastes: “quanto maior o conhecimento, maior a tristeza” (Eclesiastes 1.18), ou seja, se alguém tem um olhar mais profundo da realidade da vida, tende a sofrer mais, pois vê as coisas como são de fato. Sem ilusões. Sem percepções falsas. E como a realidade é triste, a família da C.S.F. que o diga.
                É triste perceber que no país que você nasceu, cresceu, aprendeu a amar e está construindo sua vida, boa parte das estruturas sociais estão falidas e desvirtuadas. É duro saber que a justiça na sua terra só funciona para uma pequena classe privilegiada, o que na verdade é uma tremenda injustiça. É demasiadamente triste compreender que em nosso país uma vida humana, a vida de alguém criado a imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1.26), a vida de uma senhora batalhadora que busca vencer e dar sentido para sua vida é tratada como nada. É de chorar perceber que nossas cidades estão mergulhadas em desumanidade, isto é, nossas cidades são caracterizadas por desamor, desafeto, injustiça, incompreensão, intolerância, violência, horror, desprezo e repugnância pela vida.
                Ao longo da Bíblia profetas, sacerdotes e outros servos e servas do Senhor Deus lamentaram e choraram pelo seu povo, por sua terra, por suas cidades. Eles buscaram em Deus sabedoria para olhar com profundidade para a realidade e buscaram força para não aceitar a realidade como ela se dava. Essas pessoas, pelo seu compromisso com o Senhor e seus ensinamentos, jamais aceitaram o status quo. Veja o exemplo de Habacuque:  “Até quando clamarei, e não escutarás, SENHOR? Ou gritarei a ti: Violência! E não salvarás? Por que razão me fazes ver a maldade e a opressão? A destruição e a violência estão diante de mim; também há contendas, e o litígio é comum. Por causa disso a lei se afrouxa, e a justiça nunca se manifesta, pois o ímpio cerca o justo, de modo que a justiça é pervertida.” (Habacuque 1.2 a 4). A crítica de Miquéias é bem aguda também, até parece que ele é nosso contemporâneo: “O homem piedoso foi aniquilado da terra; não há sequer um justo entre os homens; todos armam ciladas para derramar sangue; cada um caça seu irmão com uma armadilha. As suas mãos estão aptas para fazer o mal. O príncipe e o juiz exigem suborno; os nobres impõem seu próprio desejo. Todos eles tramam o crime. O melhor deles é como um espinheiro; o mais justo é pior que uma cerca de espinhos”. (Miquéias 7.2 a 4a). Poderíamos citar ainda Jeremias, Amós, Oséias, Zacarias e outros. O próprio Jesus ao contemplar as multidões percebeu tantas tribulações, dores e sofrimentos que foi tomado por indignação e compaixão, e reconhecendo que “os trabalhadores são poucos” ensinou uma oração desafiadora: “rogai ao Senhor da colheita que mande trabalhadores para a sua colheita” (Mateus 9.35 a 38). E a grande lição desta oração de Jesus é que o cristão que a ora se torna a própria resposta para tal oração. Como não considerar tais ensinamentos?!
                Se olhamos para a morte da senhora C.S.F. com indignação, se olhamos para sua família e tantas outras famílias com histórias parecidas, com compaixão, e se clamamos a Deus, dia e noite, por misericórdia para nossas cidades e nos comprometemos diariamente com Senhor para a transformação da realidade então estamos trilhando por um caminho que foi traçado há muito tempo, iniciado com os profetas, passando por Jesus e atingindo seu ápice nele, e vivenciado por muitos servos e servas do Senhor ao longo da sua jornada existencial. A este caminho damos o nome de Reino de Deus, o Reino da justiça. Agora, se somos indiferentes e insensíveis a tanta dor que há nesse mundo, então, certamente o nosso cristianismo é questionável.  Não agir com compaixão neste mundo decadente é estar desconectado daquilo que está no coração de Deus.
                A escritora Marina Colasanti em sua crônica "Eu sei, mas não devia" trata de um estado de inércia e insensibilidade que perpassa por toda a sociedade. Em um trecho ela diz assim: "Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. [...] A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração".
              Que nós que participamos conscientemente da graça do Senhor nunca nos conformemos com essa realidade tão triste que tem sido demonstrada em nosso país. Que nunca aceitemos esse sistema maligno que não respeita a dignidade intrínseca e a sacralidade de cada vida. Que nunca nos acostumemos com tanta desumanidade.
              Quando penso na história da senhora C.S.F meu coração se enche de tristeza  e indignação, e assim, me junto ao salmista que ora: “Creio que verei a bondade do Senhor na terra dos viventes” (Salmo 27.13) e também repito as palavras do apóstolo João: Maranata, ora vem, Senhor Jesus! (Apocalipse 22.20)
               
                                                                                                                Laurencie, um pastor indignado.